sábado, 16 de fevereiro de 2013

Livro: Cem Anos de Solidão - Gabriel García Marquez


Pense num lugar novo. Pense em um lugar tão novo que para falar das coisas era necessário apontá-las e dizer-lhes um nome. Pense em um livro que conta a saga de fundadores liderados pela família Buendia-Iguaran, que tiveram como patriarcas José Arcadio Buendia e Úrsula Iguarán (que eram primos e que se casaram assustados pelo mito de que o casamento entre familiares poderia gerar filhos com rabos de porco) e que se inicia da maneira a seguir:

“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendia havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casa de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes, como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo.”
          (Gabriel García Marquez. 1967. Cem anos de Solidão, página 07)

Pense em um livro fantástico, narrado de maneira onisciente, que se desenrola em quatro tempos, sem uma precisa ordem cronológica. O romance segue as memórias e construindo-se mediante os nascimentos e mortes da família, faz com que o leitor, nesse ir-e-vir, passe a sentir-se como membro da família Buendia, e é possível perceber suas perdas, rir das invenções e alegrias de José Arcadio Buendia, familiarizar-se com a força de Úrsula. 

A inocência é tão palpável no decorrer do livro que chega a ser dolorosa em sua perda. Como tudo que é novo, cada descoberta causa espanto a José Arcadio Buendia, como podemos ler a seguir:

“Por fim, numa terça feira de dezembro, na hora do almoço, soltou de uma vez todo seu tormento. As crianças haviam de recordar pelo resto da vida a augusta solenidade com que o pai se sentou na cabeceira da mesa, tremendo de febre, devastado pela prolongada vigília e pela pertinácia de sua imaginação, e revelou a eles suas descobertas:
- A Terra é redonda como uma laranja.
Úrsula perdeu a paciência “ Se você pretende ficar louco, fique sozinho”, gritou, “Não tente incutir nas crianças as suas idéias de cigano”.”

A matriarca, Úrsula Iguarán, é uma mulher forte, mãe esforçada, que pensa nos filhos, mas que um dia também some, também erra, também se angustia. Numa das passagens mais doces e fortes, (uma passagem que, inclusive, vocês poderão perceber que eu estou sempre que eu a citar), Úrsula explode ante o cansaço de toda uma vida. Ante a análise de que todos nós somos feitos de sangue e dores, limites e fracassos, que somos humanos no final...

 “Lembrando-se destas coisas enquanto aprontavam o baú de José Arcadio, Úrsula se perguntava se não era preferível se deitar logo de uma vez na sepultura e lhe jogarem a terra por cima, e perguntava a Deus, sem medo, se realmente acreditava que as pessoas eram feitas de ferro para suportar tantas penas e mortificações; e perguntando e perguntando ia atiçando a sua própria perturbação e sentia desejos irreprimíveis de se soltar e não ter papas na língua como um forasteiro e de se permitir afinal um instante de rebeldia, o instante tantas vezes desejado e tantas vezes adiado, para cortar a resignação pela raiz e cagar de uma vez para tudo e tirar do coração os infinitos montes de palavrões que tivera que engolir durante um século inteiro de conformismo.
— Porra! — gritou. 
Amaranta, que começava a colocar a roupa no baú, pensou que ela tinha sido picada por um escorpião. 
— Onde está? — perguntou alarmada. 
— O quê? 
— O animal!— esclareceu Amaranta. 
Úrsula pôs o dedo no coração. 
— Aqui — disse.”

                                                                                       ***

“Só quando começou a desmontar a porta do quartinho é que Úrsula se atreveu a lhe perguntar por que o fazia, e ele lhe respondeu com certa amargura: “Já que ninguém quer ir embora, nós iremos sozinhos.” Úrsula não se alterou.
— Nós não iremos — disse. — Ficaremos aqui, porque aqui tivemos um filho.
— Ainda não temos um morto — ele disse. — A gente não é de um lugar enquanto não tem um morto enterrado nele.
Úrsula replicou, com uma suave firmeza:
Se é preciso que eu morra para que vocês fiquem aqui,eu morro.”

O livro, também narra o massacre de Arataca (http://www.espacoacademico.com.br/074/74adoue.htm ) e traz algumas cenas tão detalhistas, que o leitor sente como se fossem trabalhadas minuto à minuto, quadro à quadro, com o cuidado de inseri-lo na paisagem, colocando-o sobre os ombros de seu pai, dando-lhe uma visão panorâmica de toda a cena:

“[...] esperando um trem que não chegava, mais de três mil pessoas, entre trabalhadores, mulheres e crianças, tinham atulhado o espaço descoberto em frente da estação e se apertavam nas ruas adjacentes, que o exército fechara com filas de metralhadoras.
- Senhoras e senhores –disse o capitão com uma voz baixa, lenta, um pouco cansada- têm cinco minutos para se retirar.
A vaia e os gritos repetidos afogaram o toque de clarim que anunciou o princípio do prazo. Ninguém se mexeu.
- Já passaram os cinco minutos –disse o capitão no mesmo tom.- Mais um minuto e atiramos.
José Arcádio Segundo, suando gelo, desceu o menino dos ombros e o entregou à mulher. “Esses cornos são capazes de disparar”, murmurou ela. José Arcádio Segundo se ergueu acima das cabeças que tinha pela frente, e, pela primeira vez em sua vida levantou a voz.
- Cornos! –gritou-. Podem levar de presente o minuto que falta. (p.: 269)
Ao fim do seu grito aconteceu uma coisa que não lhe produziu espanto, mas uma espécie de alucinação. O capitão deu a ordem de fogo e quatorze ninhos de metralhadoras responderam imediatamente. Mas tudo parecia uma farsa. Era como se as metralhadoras estivessem carregadas com fogos de artifício, porque se escutava o seu resfolegante matraquear e se viam as suas cusparadas incandescentes, mas não se percebia a mais leve reação, nem uma voz, nem sequer um suspiro, entre a multidão compacta que parecia petrificada por uma invulnerabilidade instantânea. De repente, de um lado da estação, um grito de morte quebrou o encantamento: “Aaaai, minha mãe”. Uma força sísmica, uma respiração vulcânica, um rugido de cataclisma, arrebentaram no centro da multidão com uma descomunal potência expansiva, enquanto a mãe e o outro eram absorvidos pela multidão centrifugada pelo pânico.(p.: 269-270)”
Muitos anos depois, o menino haveria de contar ainda, apesar de os vizinhos continuarem a encará-lo como um velho maluco, que José Arcádio Segundo o erguera por cima da sua cabeça e se deixara arrastar, quase no ar, como que flutuando no terror da multidão, para uma rua adjacente. A posição privilegiada do menino lhe permitiu ver que nesse momento a massa ululante começava a chegar na esquina e a fila de metralhadoras abriu fogo. (p.: 270)

E nesse jogo, nesse avançar e retroceder como uma memória aberta, um livro de lembranças, uma forma inigualável de adentrar a vida dos personagens, sua saga, suas alegrias, suas perdas, suas mortes. Nós, os leitores, adentramos uma vida que não se repetirá, que, como diz o próprio livro “ Entretanto, antes de chegar ao verso final já tinha compreendido que não sairia nunca daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilonia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra”

Há muitos outros personagens para compor essa mágica história. Não estou citando todos porque seria entregar o jogo. Mas, só o fato de existir Macondo, esse lugar em que “ CHOVEU durante quatro anos, onze meses e dois dias.” (...) em que “A atmosfera estava tão úmida que os peixes poderiam entrar pelas portas e sair pelas janelas, navegando no ar dos aposentos” (...) e que se “Não fosse por esse padecimento que nada teria tido de pudendo para alguém que não estivesse doente também de pudicícia, e se não fosse a perda das cartas, Fernanda não teria se importado com a chuva, porque afinal de contas toda a sua vida tinha sido como se estivesse chovendo.Não modificou os horários nem perdoou os ritos. Quando a mesa ainda estava suspensa sobre tijolos e as cadeiras colocadas sobre tábuas para que os comensais não molhassem os pés, ela continuava servindo com toalhas de linho e louça chinesa, e acendendo os candelabros no jantar, porque achava que as calamidades não podiam servir de pretexto para o relaxamento dos costumes”(...) Até que, “Assim foi. Numa sexta-feira, às duas da tarde, iluminou-se o mundo com um sol bobo, vermelho e áspero como poeira de tijolo e quase tão fresco como a água, e não voltou chover durante dez anos”, acreditem, já é um livro valiosíssimo!

Como não é um livro fácil, (inclusive, há uma matéria na folha de São Paulo que aponta o livro como “Impossível de ser lido” pelos italianos. http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1184951-para-italianos-cem-anos-de-solidao-e-impossivel-de-ser-lido.shtml). Existe um .gif para auxiliar na leitura. Ele traça a árvore genealógica da família Buendia para facilitar a compreensão de cada etapa das várias que ocorrem de maneira não cronológica no romance.

                         http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/9/99/Buendia.gif/750px-Buendia.gif

Enfim, mediante todo esse realismo mágico, acredito que por mais esforço que eu possa fazer, por mais termos técnicos que eu possa colocar aqui, nenhum será capaz de exprimir o meu sentimento por esse livro. A história criada por Garcia Marquez é, pra mim, a enciclopédia da imaginação, é uma porta aberta pra Nárnia, a Nárnia mais linda que exista, aquela que nos faz reencontrar algo de nós mesmo que talvez, nem seja a nós mesmos, mas um retalho de um sonho.

Meu marido já ouviu falar tanto nesse livro, que chega a se irritar algumas vezes, dizendo que cruzo minha vida à de Úrsula. Mas, realmente, há dias em que me sinto em Macondo, em suas chuvas, em suas tristezas; em sua terra vermelha, coberta pela vida e pela morte.

E, além de tudo,

O mundo terá acabado de se foder”, disse então, “no dia em que os homens viajarem de primeira classe e a literatura no vagão de carga.”

           uma passagem como essa vale todo o meu amor. 

        
Por causa desse livro, quis ir morar na Colômbia.
É o livro da minha vida, indubitavelmente.


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Sobre o autor:




Gabriel García Márquez (Aracataca, 6 de março de 1927[1]) é um escritor, jornalista, editor, ativista e político colombiano. Considerado um dos autores mais importantes do século 20, ele foi premiado com o 1972 Prémio Internacional Neustadt de Literatura de 1982 e o Nobel de Literatura de 1982 pelo conjunto de sua obra, que entre outros livros inclui o aclamado Cem Anos de Solidão. Foi responsável por criar o realismo mágico na literatura latino-americana. Viajou muito pela Europa e vive actualmente no México. É pai do cineasta Rodrigo García.
Em abril de 2009 declarou que se aposentou e que não pretendia escrever mais livros. Essa notícia viu-se confirmada em 2012, quando o seu irmão, Jaime Garcia Marquez, noticia que foi diagnosticada uma demência a Gabriel Garcia Marquez e que, embora esteja em bom estado físico, perdeu a memória e não voltará a escrever.


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